segunda-feira, 29 de julho de 2013


PÉ DE MEIA LITERÁRIO

Sobre a Perda de Sentidos

A expressão “perda de sentidos” significa na linguagem popular um desmaio. Dizemos que alguém perdeu os sentidos quando essa pessoa desmaiou. Faz sentido (perdoem o trocadilho). Perder os sentidos, no desmaio, nessa perspectiva, significa um desligamento da consciência com o mundo. A pessoa desmaiada desliga-se, desconecta-se da realidade. E quando volta à realidade, volta da mesma forma, sem acréscimos ou rupturas ou deslocamentos.
De certa forma, a vida corrida, amalucada, superficial e aligeirada que a maioria de nós vive, nos dias de hoje, pode significar um “quase desmaio”, nesse sentido de se desligar e desconectar da realidade. Pode até parecer um paradoxo falar de desconexão com a realidade em uma época plena de imagens, de possibilidades, de comunicação, de sentidos disponíveis. Talvez seja mesmo um paradoxo, um dos muitos que nos afligem. A vida é um show que passa diariamente em diferentes tipos de tela, das pequenas, de mão, às enormes, cheias de polegadas presas às paredes. E nesse show pós-moderno, os sentidos possíveis e oferecidos, como num shopping center de imagens, são tantos e tantos, que nos perdemos nessa oferta aparentemente gratuita, que cobra um preço caro: “um desmaio significativo”. Nos veículos em que nos locomovemos, nos nossos locais de trabalho, nos espaços de lazer, nos espaços públicos, somos muitos, sempre, mas estamos invariavelmente isolados em um individualismo superficial e grudados a uma tela. Em “desmaios de significação”, se é que posso falar assim.
No show da vida em tela, as palavras são meros coadjuvantes. São rápidas, curtas, poucas, maneiras, apressadas. A pressa e a necessidade de responder quase imediatamente a todo estímulo que nos chega por diversas vias, talvez apenas para marcar presença e fazer jus aos quinze segundos de fama, superficializa os sentidos. Olhamos, mas não vemos; escutamos, mas não ouvimos; falamos, mas não somos ouvidos; acessamos, mas não entendemos; assistimos, mas os sentidos nos escapam. Escolhemos o tempo todo e isso pode nos fazer pensar sermos sujeitos construtores de sua própria história. Recebemos o tempo todo, sempre e muito: imagens, redes, correntes, mensagens, convites, propostas, fotos, jogos, propagandas, endereços para visitar, para acompanhar, para curtir. Ufa! Somos sujeitos recebedores e por trás disso somos vazios de memória, candidatos perfeitos ao desmaio significativo.
E daí?
Bem... é aí que entra a leitura da literatura.
A literatura também nos faz perder os sentidos, com seu potencial de deslocamentos, de quebra de conceitos, de alteração de estruturas prévias, de instalação de buracos, de abalos do conhecimento estabelecido. O texto e a imagem literária provocam fendas nos nossos sentidos exatos e nos deslocam para fora da zona de conforto, de apoio, de compreensão. Como se cada um de nós saísse de seu corpo e de sua mente e se pusesse a caminhar em outros universos, distintos do seu, encontrando outros (des)entendimentos, outras (in)compreensões, outros (des)acertos e novas, muitas, (re)combinações. Um texto/imagem literário/a pode mexer com sua cabeça, alterar o seu caminho, a sua compreensão e abalar o seu rumo. Não pelo excesso nem pelo barulho intenso das vozes; não pela rapidez e tampouco pela superficialidade. Pela profundidade do deslocamento. E pela exigência de um envolvimento mais necessário, mais vital. A literatura não se satisfaz com envolvimentos passageiros, momentâneos, fugazes, ligeiros. Nem permite ao leitor uma satisfação fast-food, porque esta vem e vai rapidamente. A fome do leitor da literatura é uma fome mais profunda, traduzida em um gosto de comer as relações da vida.
A literatura, como a arte de modo geral, produz outros sentidos e talvez aí resida sua relação diferente na perspectiva desse tema, da perda dos sentidos. Se, de um lado, uma obra literária pode nos fazer perder os sentidos, num significado amplo, de fazer desmaiar e de se perder o contato com a realidade, por outro lado, é a literatura o modo mais intenso de provocar a sobrevivência na busca de novos (e muitos) sentidos. A tristeza pode ser revestida de outros entendimentos à luz de um verso de um poema; a saudade pode ser recriada à luz de outro verso; a perda pode ser relativizada por uma crônica; a sabedoria pode ser reorganizada à luz de um conto; o amor pode ser potencializado à luz de biografia;  a busca e o encontro podem ser reorientados à luz de um romance.
Estes novos sentidos alimentam a fome da vida. Portanto, nessas últimas e breves palavras,  quero concluir que, perder o sentido, na leitura da literatura, é o modo mais essencial de  encontrarmos novos sentidos. Voltar de um desmaio causado pela perda de sentidos trazida pela obra literária é voltar à realidade com novo e mais rico olhar, com nova e mais intensa compreensão, com satisfação mais profunda. Sem nenhum sentido prático ou pretextual, visto que essa trajetória é da natureza da obra literária.
Pelo menos até a próxima provocação literária e nova perda de sentidos.

Edson Gabriel Garcia
Escritor e educador


                              

           


2 comentários:

  1. Edson, meu amigo!
    Parabéns, adorei a matéria!!!!
    Bjs,
    Regina Sormani

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  2. Prezado, Edson, de fato, se não perdermos os sentidos no ditoso universo literário, poderemos perder para sempre o sentido de viver conectados ao mundo da criação e da fantasia humana. Adorei o texto, Parabéns! Abraço.
    Bené

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