PÉ
DE MEIA LITERÁRIO
Sobre
a Perda de Sentidos
A expressão “perda de sentidos” significa na linguagem
popular um desmaio. Dizemos que alguém perdeu os sentidos quando essa pessoa
desmaiou. Faz sentido (perdoem o trocadilho). Perder os sentidos, no desmaio, nessa
perspectiva, significa um desligamento da consciência com o mundo. A pessoa
desmaiada desliga-se, desconecta-se da realidade. E quando volta à realidade,
volta da mesma forma, sem acréscimos ou rupturas ou deslocamentos.
De certa forma, a vida corrida, amalucada, superficial
e aligeirada que a maioria de nós vive, nos dias de hoje, pode significar um
“quase desmaio”, nesse sentido de se desligar e desconectar da realidade. Pode
até parecer um paradoxo falar de desconexão com a realidade em uma época plena
de imagens, de possibilidades, de comunicação, de sentidos disponíveis. Talvez
seja mesmo um paradoxo, um dos muitos que nos afligem. A vida é um show que
passa diariamente em diferentes tipos de tela, das pequenas, de mão, às
enormes, cheias de polegadas presas às paredes. E nesse show pós-moderno, os
sentidos possíveis e oferecidos, como num shopping center de imagens, são
tantos e tantos, que nos perdemos nessa oferta aparentemente gratuita, que
cobra um preço caro: “um desmaio significativo”. Nos veículos em que nos
locomovemos, nos nossos locais de trabalho, nos espaços de lazer, nos espaços
públicos, somos muitos, sempre, mas estamos invariavelmente isolados em um
individualismo superficial e grudados a uma tela. Em “desmaios de
significação”, se é que posso falar assim.
No show da vida em tela, as palavras são meros
coadjuvantes. São rápidas, curtas, poucas, maneiras, apressadas. A pressa e a
necessidade de responder quase imediatamente a todo estímulo que nos chega por
diversas vias, talvez apenas para marcar presença e fazer jus aos quinze
segundos de fama, superficializa os sentidos. Olhamos, mas não vemos;
escutamos, mas não ouvimos; falamos, mas não somos ouvidos; acessamos, mas não
entendemos; assistimos, mas os sentidos nos escapam. Escolhemos o tempo todo e
isso pode nos fazer pensar sermos sujeitos construtores de sua própria
história. Recebemos o tempo todo, sempre e muito: imagens, redes, correntes,
mensagens, convites, propostas, fotos, jogos, propagandas, endereços para
visitar, para acompanhar, para curtir. Ufa! Somos sujeitos recebedores e por
trás disso somos vazios de memória, candidatos perfeitos ao desmaio
significativo.
E daí?
Bem... é aí que entra a leitura da literatura.
A literatura também nos faz perder os sentidos, com seu
potencial de deslocamentos, de quebra de conceitos, de alteração de estruturas
prévias, de instalação de buracos, de abalos do conhecimento estabelecido. O
texto e a imagem literária provocam fendas nos nossos sentidos exatos e nos
deslocam para fora da zona de conforto, de apoio, de compreensão. Como se cada
um de nós saísse de seu corpo e de sua mente e se pusesse a caminhar em outros
universos, distintos do seu, encontrando outros (des)entendimentos, outras
(in)compreensões, outros (des)acertos e novas, muitas, (re)combinações. Um
texto/imagem literário/a pode mexer com sua cabeça, alterar o seu caminho, a
sua compreensão e abalar o seu rumo. Não pelo excesso nem pelo barulho intenso
das vozes; não pela rapidez e tampouco pela superficialidade. Pela profundidade
do deslocamento. E pela exigência de um envolvimento mais necessário, mais
vital. A literatura não se satisfaz com envolvimentos passageiros, momentâneos,
fugazes, ligeiros. Nem permite ao leitor uma satisfação fast-food, porque esta
vem e vai rapidamente. A fome do leitor da literatura é uma fome mais profunda,
traduzida em um gosto de comer as relações da vida.
A literatura, como a arte de modo geral, produz outros
sentidos e talvez aí resida sua relação diferente na perspectiva desse tema, da
perda dos sentidos. Se, de um lado, uma obra literária pode nos fazer perder os
sentidos, num significado amplo, de fazer desmaiar e de se perder o contato com
a realidade, por outro lado, é a literatura o modo mais intenso de provocar a
sobrevivência na busca de novos (e muitos) sentidos. A tristeza pode ser
revestida de outros entendimentos à luz de um verso de um poema; a saudade pode
ser recriada à luz de outro verso; a perda pode ser relativizada por uma
crônica; a sabedoria pode ser reorganizada à luz de um conto; o amor pode ser
potencializado à luz de biografia; a
busca e o encontro podem ser reorientados à luz de um romance.
Estes novos sentidos alimentam a fome da vida.
Portanto, nessas últimas e breves palavras,
quero concluir que, perder o sentido, na leitura da literatura, é o modo
mais essencial de encontrarmos novos
sentidos. Voltar de um desmaio causado pela perda de sentidos trazida pela obra
literária é voltar à realidade com novo e mais rico olhar, com nova e mais
intensa compreensão, com satisfação mais profunda. Sem nenhum sentido prático
ou pretextual, visto que essa trajetória é da natureza da obra literária.
Pelo menos até a próxima provocação literária e nova
perda de sentidos.
Edson Gabriel Garcia
Escritor e educador
Edson Gabriel Garcia
Escritor e educador
Edson, meu amigo!
ResponderExcluirParabéns, adorei a matéria!!!!
Bjs,
Regina Sormani
Prezado, Edson, de fato, se não perdermos os sentidos no ditoso universo literário, poderemos perder para sempre o sentido de viver conectados ao mundo da criação e da fantasia humana. Adorei o texto, Parabéns! Abraço.
ResponderExcluirBené