SOBRE MEDIAÇÕES
No breve espaço de tempo de sua leitura, tratarei de ocupá-la
com a discussão de alguns aspectos de um conceito muito em trânsito entre
nós: reflexões sobre as questões da leitura e sua fluência e a
formação de leitores. A mediação de que aqui tratarei, de forma
rápida, pode ser definida como o ato de se colocar no meio, entre pessoas,
abrindo espaço para o entendimento e o diálogo. Embora ultimamente bastante
difundida na esfera jurídica, como o espaço para a solução de conflitos, a
mediação é muito mais amplo do que esta forma reducionista que vem ganhando
espaços e corações em tantas instâncias. A mediação a que nos referimos é
abrangente e pressupõe o diálogo como o cerne de sua definição.
Penso que é possível afirmar que desde sempre a humanidade se
“humanizou” conversando, trocando ideias e experiências, narrando,
contando, falando um para os outros, ouvindo. A conhecida dependência que os
humanos têm dos seus familiares para sobreviver nas duas primeiras décadas de
vida guarda em si uma dualidade contraditória: dependemos dos outros – e talvez
não gostemos disso - mas, fazendo dessa dependência uma experiência prazerosa
de convivência. Nesse sentido, desde o distante narrador à beira da fogueira
até moderno terapeuta, das lições de aprendizagens às transmissões de
conhecimento, essa convivência expõe nossa necessidade de mediarmos e sermos
mediados, tomando a língua, escrita ou falada, como instrumento fundamental
desse processo. A única diferença, dos tempos ancestrais aos dias de hoje,
talvez seja a diversidade das mediações. Se antes, o mais velho do grupo era
praticamente o único responsável pela ação objetiva e cultural da mediação, hoje,
há uma diversidade muito grande de mediações, mediações ocorridas em múltiplas
instâncias e em diversas situações. Somos mediados e mediadores em tempo
pleno.
No campo das questões ligadas à leitura, à leitura da literatura e à
formação de leitores, falamos de uma mediação que pressupõe leitores e livros,
e uma situação de aprendizagem do gosto pela leitura. Essa situação, à moda
vygotskyniana, implica em leitores mais maduros e autônomos que se colocam
entre o livro e os leitores em desenvolvimento e os “mediam” para dar o salto
qualitativo. Simples assim: quem já caminhou um pouco e passou pelo caminho
estende a mão e apoia o menos experiente para o passo de avanço, da qualidade,
na busca do que está mais alto, mais à frente. A mediação é a ponte que se
constrói entre um e outro; é o meio, que por estar no meio, se apresenta como
elo entre uma e outra ponta. Assim, a mediação e os mediadores se apresentam de
muitas formas e em várias situações: as mediações familiares, as mediações
institucionais, as mediações escolares, as mediações feitas pelos veículos de
comunicação social (jornal, televisão, redes sociais, etc), entre outras. Em
outra oportunidade, em outro texto, tratarei dessa matéria.
Uma mediação, de cuja natureza faz parte a aprendizagem, sempre
implicará um espaço de relação entre pessoas, que ensinam, que
ajudam, que mostram, que oferecem, que abrem e ampliam visões, que
sugerem... No entanto, há que se registrar que o limite entre “mediar” e “fazer
por” é tênue, delicado, quase sempre tentado a ser rompido. Sem dúvida, na
maioria das vezes, é mais fácil e mais rápido e menos aborrecedor, fazer pelo
outro, fazer no lugar do outro.
Tomemos como exemplo de nossa breve investigação, o caso das mediações
escolares. E dentro deste recorte atentemos especificamente para a questão do
sujeito leitor, e um dos aspectos do comportamento leitor, que é a
seleção de livros. Por razões que todos nós conhecemos, pelo menos a maioria
das razões, o espaço escolar é por excelência o espaço do diálogo, o
espaço do encontro entre pessoas, o espaço da aprendizagem, o espaço do
trânsito do conhecimento, enfim, o espaço das mediações. Pois bem,
essa condição elevou o espaço escolar como o espaço onde as mediações entre o
leitor e o livro devem acontecer com freqüência, com qualidade, com intensidade
e com propriedade. Em decorrência disso, a burocracia estatal, plena de boas
intenções, chamou para si a responsabilidade de selecionar, comprar e
distribuir acervos para milhares de escolas públicas brasileiras.
(Não vou particularizar agora a discussão sobre este tipo de atuação da esfera
pública e os desvios que vêm causando na produção e publicação de livros, pois
isso merece uma discussão mais ampla). Ao fazer essa compra (milionária) de
livros para montar acervos para as escolas, bem intencionados politicamente, os
burocratas da educação cometem um erro fundamental, caro a qualquer processo de
mediação da leitura: se colocam no lugar do sujeito e fazem por ele a seleção
do acervo.
Os educadores responsáveis pela mediação da leitura na escola são
descartados da primeira etapa do processo de mediação: escolher o seu material
de trabalho. Se um dos pressupostos de toda mediação é o salto de qualidade e a
autonomia, como pode um educador crescer como sujeito pedagógico dentro de um
processo de mediação se é alijado de parte substantiva de sua formação? Essa
postura colonialista impede que educadores, errando e acertando, construam sua
autonomia como educador/ selecionador de textos para o seu trabalho, e nesta
trajetória vivam etapas fundamentais de sua formação como sujeito leitor e
formador de leitores. Receber acervos prontos e pré-selecionados significa a
mesma coisa que dizer que ele não tem capacidade para escolher o material de
trabalho. Como escreveu, e defendeu o filósofo da educação Paulo
Freire, o educador deve ser sujeito do seu projeto pedagógico e esta
subjetividade passa certamente pela escolha do seu material de trabalho. Que
tipo de mediação ele vivenciará com os seus alunos, futuros leitores autônomos,
se não teve o direito de escolher os livros de acordo com o seu
projeto pedagógico, com o seu interesse, com o contexto de sua realidade
escolar? Tenderá a reproduzir o mesmo comportamento, confundindo mediação com o
processo mais fácil que é o de se colocar no lugar do outro e escolher para
ele?
Inúmeras são as razões que sustentam esse processo centralizado de
seleção, compra e distribuição de acervos para escolas públicas, mas certamente
são muitas também as razões que nos obrigam a respeitar a construção do
processo de mediação de leitura nas escolas, entendendo de uma vez por todas
que o educador deve ser respeitado como sujeito “selecionador” do seu material
de trabalho. Por mais que isto signifique tirar do processo pessoas gabaritadas
e que fazem isso (se colocar no lugar do outro e escolher por ele) há décadas,
é necessário e urgente mudar essa relação. Sob pena de falarmos de mediação sob
olhares diferentes e criticarmos as produções escolares sem lhes darmos as
condições corretas de trabalho.
Mediação é assunto amplo e multifacetado. Mas precisa ser discutido por
todos os que fazem e pensam a literatura, a leitura e a formação de novos
leitores.
EDSON GABRIEL GARCIA
Escritor e educador
Li sua crônica, Edson, esclarecedora, faz refletir, provoca, avança na questão das mediações (na verdade uma ditadura editorial) e deve ser mais divulgado seu ponto de vista. Grata. Abraço da Regina Gulla. Grata à Regina Sormani também e todos os colaboradores.
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