NO LIMIAR DA NATUREZA*
“Se é de metal, minha visão atina
e ao pedregulho mais comum eu canto.”
(Bento Ferraz — jornalista, compositor e poeta)
Percorro as poucas ruas do meu bairro,
as casas que contornam labirintos,
os muros, pelo musgo escuro, tintos,
as portas e janelas de madeira,
um gato que aparece e já se esgueira,
a velha que me espia da janela,
a jovem sorridente e muito bela,
e tudo que provoca algum espanto,
se é natural, minha visão atina
e o pedregulho mais comum eu canto,
porque, se a natureza me convida,
não posso desprezar o seu chamado.
No mundo, eu não me sinto deslocado,
meu bairro é sempre cheio de surpresas
e posso descobrir muitas belezas,
apenas, ao dobrar qualquer esquina:
Se é natural, minha visão atina
e o pedregulho mais comum eu canto
e, assim, a cada pedra eu amo tanto,
pois pedras também guardam sutilezas
e nada do que vejo é permanente...
As nuvens condensadas pelo céu,
os pássaros, em súbito escarcéu,
acabam por gravar-se na retina.
Se é natural, minha visão atina
e o pedregulho mais comum eu canto...
Meu canto almeja ser um acalanto,
qual música suave das esferas,
os sons que já vararam tantas eras,
ou mesmo o próprio Verbo sacrossanto!
Quem dera que o meu canto fosse ouvido,
tal fosse uma verdade cristalina!
Se é natural, minha visão atina
e o pedregulho mais comum eu canto,
assim evito apenas que o meu pranto,
vertido por tristezas inconfessas,
percorra as muitas ruas e travessas
do bairro onde nasci, faz algum tempo
e os sonhos que deixei no calçamento
e a paz sejam reais, e não promessas...
À paz, a inteligência se destina!
Se é natural, minha visão atina
e o pedregulho mais comum eu canto.
A pedra não tem vida e, entretanto,
não causa nenhum mal ao semelhante.
Inerte, seu valor é mais constante,
que aquele do mais mísero animal,
afeito a fazer bem, só faz o mal,
e atinge com furor seu semelhante,
e dizem que esse ser é racional.
Nilza Azzi
*Poema com mote migrante