domingo, 25 de novembro de 2012

A história de Heitor


Capítulo IX

Estava no meio do descampado, debaixo de uma árvore baixa e retorcida, quando viu uma sombra que avançava lentamente em sua direção. Prestou um pouco mais de atenção e viu que não era uma sombra: Era Tinoco, naturalmente acompanhado da própria sombra. Heitor não sabia como seu amigo aguentava aqueles pelos tão compridos. O rabo, imaginava, era para que ele não se desequilibrasse e inclinasse todo para frente com aquele focinho tão comprido. Não teve ânimo para sair do lugar e esperou por Tinoco ali mesmo. O  tamanduá chegou bem perto e só então Heitor reparou em suas unhas enormes. Ficou feliz por serem amigos.
– E então, Heitor? O que faz aqui tão desanimado?
– Tive um encontro com os humanos. E o meu não foi dos bons; fugi de lá e não posso voltar. Concordo com você: aquele é um lugar muito perigoso. O pior, Tinoco, é que já procurei, mas aqui não há comida para mim. Estava esperando o começo da tarde para caminhar mais um pouco, procurar alguma coisa para comer. Há dois dias saio para caçar e nada encontro, nem caça, nem frutas; nem mesmo no rio acho alimento.
– Outros animais passam por aqui e eu fico sabendo das coisas. As notícias correm.
– Vou chamá-lo de Toró, posso? Cada vez mais acho que este novo nome lhe cai muito bem. E Tinoco ria todo contente. "Lembra" do toró que caiu quando nos conhecemos? Desde aquele dia não vejo a hora de nos encontrarmos, para falar sobre isso; aquela chuva foi seu batismo, Toró. – O que acha?
– É bonito, Tinoco, obrigado. Combina mais com um lobo do cerrado?
– Certamente, Toró. Soa muito bem.
– E será que vou me acostumar?
– Claro, Toró. Você ainda é novinho; terá muito tempo.
– Está bem! – disse – Talvez você tenha razão, mas tenho um assunto mais urgente para resolver e não sei como: Estou começando a ficar com muita fome.
– É sobre isso mesmo que eu ia falar, Toró. Alguns lobos, de passagem por aqui, contaram sobre um lugar onde os humanos – imagine – os humanos estão dando comida aos animais famintos por causa da destruição de seus territórios. É só caminhar na direção daquele cumaru enorme, dali siga sempre em frente até a Pedra do Tamanduá, – você vai reconhecer, porque é parecida comigo – logo se avista um campo e, bem longe, no fim desse campo, o lugar onde a comida está. É só comer.
– Sem precisar muito esforço?
– Isso mesmo. Sem precisar gastar tanta energia!
– Frutas ou bichos?
– Carne, respondeu, pondo a língua para fora. Pena que não haja frutas e algumas formigas.
– Obrigada, Tinoco. Vou procurar esse lugar, então.
– Por nada, Toró. Amigo é pra isso mesmo.
Heitor ergueu-se, espreguiçou e partiu na direção indicada. O cumaru era muito grande mesmo e passara bem pela queimada, por ser muito alto. Mas não havia uma sombra sequer dos bichos de poucas luas atrás, qualquer das espécies que vinham em busca de seus frutos, tanto do chão, como do ar. Porém, dava para perceber uma trilha no chão, rastros de outros animais que haviam passado por ali. Depois de caminhar um  bom tempo, um longo tempo para um lobo faminto, ele avistou a pedra. Com boa dose de imaginação ela podia parecer com um tamanduá.
– Que vaidoso! – pensou Heitor.
O campo era enorme e, de onde estava, Heitor não avistava nada, mas como tinha confiança no amigo, seguiu em frente. Andou e andou, e só ao cair da tarde avistou o lugar. Aqueles humanos eram diferentes dos que encontrara anteriormente; usavam umas peles compridas que o vento sacudia. Eram muito estranhos, mas não inspiravam medo; pareciam bondosos e amigáveis. Era um lugar bonito, com uma colina de pedra toda arrumadinha em pedaços iguais.
Heitor viu alguma coisa ser colocada no alto daquela colina; viu um lobo desconhecido subir, agarrar o alimento e sair correndo. Ouviu o barulho do osso que ele fora roer no escuro, depois viu mais um outro e mais outro. Sem conseguir resistir, iam buscar o alimento que lhes eram oferecidos, mas logo saíam nervosos e assustados, com o rabo entre as pernas. Ele também percebeu vários humanos parados lá em cima. Não eram ameaçadores; nada fizeram a não ser olhar. E um daqueles humanos trazia a comida e soltava uns sons estranhos, que seu instinto não percebia como ameaça, mas ainda assim entendia como perigo. O cheiro dos humanos não era familiar, nem agradável.
Heitor, um lobo-guará altivo, belo, já com quase um metro de altura, misterioso e selvagem, um verdadeiro filho do cerrado, não podia aceitar aquilo. A fome era muito grande, mas ele era garboso demais para sofrer aquela humilhação. Ele queria seguir seu instinto, procurar, de acordo com os seus sentidos, aquilo que a natureza pródiga do cerrado oferecia, fossem frutos, caça ou aqueles animais que encontrava no rio enquanto ainda era um lobo filhote. Decidido, virou-se e foi embora dali.

Nilza Azzi


Desenho de Bruna Carolina Lourenço
E.E. Coronel José Adolfo de Aguiar - Araxá - MG

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