sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Quem conta um conto...

A barca

Transborda, 
Sobra pra todos os lados.
Cai, esparrama e invade,
Os cantos mais escondidos,
Miúdos, afastados.
Não cabe em mim
Sai pelos olhos,
Agarrado em meu grito.
O sentir é líquido.
Cansada, a barca parou sobre as marolas suaves sentindo a brisa salgada do mar e suspirou aliviada. A tempestade havia cessado e ela sobrevivera mais uma vez. O mar era como a vida: de repente tudo muda. O vento altera os caminhos e seu sopro conduz aos destinos por ele escolhido. Ela estava cansada de navegar sozinha por tantos mares, sem ter uma companhia para compartilhar suas emoções. O pôr do sol ainda a seduzia, mas cada vez apresentava menos cores.
Sentindo a nostalgia de um dia que nunca houve, recomeçou seu caminho deslizando suavemente pela espuma das ondas indomáveis que às vezes eram carinhosas, outras vezes, inimigas, jogando-a desconcertada para cima e para os lados, deixando-a sem rumo e obrigando-a a unir todas as forças na tentativa de resgatar o que nunca fora seu: o controle da sua jornada.
Sempre que navegava, apreciava as demais que por ela passavam, com o único interesse de observar o que os mares escondem e, às vezes, revelam sem querer. Inesperadamente, algo chamou sua atenção. A barca que surgira na linha do horizonte era diferente de todas que ela já havia visto. Algo a atraía àquela embarcação com uma força inexplicável. Bem que tentou se conter, mudar de rumo ou simplesmente parar. Mas, foi tudo em vão. Como um imenso imã, foi atraída por aquele mistério.
Aos poucos, foi aceitando que os ventos a envolvessem e a levassem naquela direção. Precisava descobrir o que lhe causava tanta inquietude. Ao aproximar-se da barca misteriosa notou que suas cores eram cintilantes e brilhavam quando tocadas pelos raios do Sol. Parecia que havia sido pintada por todas as cores do arco-íris. Ela foi tomada por uma imensa paz, como jamais sentira. E, aos poucos, foi se aproximando da outra que, ao percebê-la, parou de velejar e a esperou, emitindo sinais quando o vento agitava suas velas que soavam como o canto de uma baleia apaixonada. As suas velas batiam freneticamente. Nunca sentira nada que se igualasse à intensidade desse encontro. Sentia-se como se um peixe enorme a empurrasse para mais perto daquela barca cintilante. Precisava, desesperadamente, sentir o seu calor. Percebeu que elas se encaixavam perfeitamente, como duas peças de um intrincado quebra-cabeça. 
A barca cintilante, assustou-se. Elas eram muito diferentes. A primeira era leve, navegava rapidamente por muitos mares, sozinha e sem medos. A segunda tinha uma âncora pesada, que trazia equilíbrio e lhe permitia apreciar o pôr do sol em paz. Mas a âncora também evitava que pudesse velejar rapidamente. E a velocidade da pequena barca assustava! Tentaram enxergar além  de seus cascos. O mar, em respeito àquele momento raro, se acalmou por um minuto. As gaivotas sobrevoaram em total silêncio. O vento que se agitava cessou por completo quando percebeu a intensidade dos olhares. 
Elas sabiam que não seria fácil velejar lado a lado. Uma teria que se acalmar e domar seus instintos selvagens, enquanto a outra teria que se desapegar da âncora e se deixar levar pela força do mar, sem medo. Acreditavam que o destino de suas jornadas seria o mesmo, se elas assim o desejassem. Que o amor que sentiam era mais forte que o imenso mar.
Aos poucos, foram se distanciando na linha do horizonte e quem as visse não mais distinguia qual era a barca cansada e qual era a barca cintilante. Haviam se tornado única, completa e realizada. 

Simone Pedersen é escritora, coordenadora regional da AEILIJ paulista.

A barca  é um dos contos do livro de Simone Pedersen O TANGO DA VIDA, publicado pela Paco Editorial.

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