terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Vice-Versa de Dezembro de 2009



Agradeço a participação das escritoras Georgina Martins (RJ) e Eloí E. Bocheco (SC) neste Vice-Versa de Dezembro.




Respostas de Eloí E.Bocheco

1. O que é literatura para você?

Meu primeiro contato com a literatura foi através da tradição oral . Eu devia ter uns oito anos quando me dei conta que havia uma grande diferença entre as palavras que saíam da boca dos contadores de histórias e declamadores, nos serões, em Duas Pontes, onde passei a infância, e as palavras dos textos referenciais apresentados na escola.
Ouvindo aquelas histórias e poemas eu sentia que as palavras tinham um outro modo de dizer, que eram mais vivas, pulavam , dançavam e podiam encantar, comover, arrebatar. Embora não soubesse elaborar, sentia que havia uma enorme diferença. E, inclusive, me ressentia da falta de tato da escola para lidar com os saberes das crianças que moravam no campo, como eu. Foi uma decepção saber que sombrinha-de-cobra chamava-se cogumelo e que só deveríamos usar “esta” palavra que era “certa, real e comprovada”. “Sombrinha-de-cobra” não era “certa, real e comprovada”, mas, nomeada assim pela cultura popular, era mágica. Quando eu perguntava à minha vó como é que as cobras, tão compridas, podiam usar sombrinhas tão curtas – ela explicava que o maior bem de uma cobra é a cabeça e, neste caso, a sombrinha era perfeita.
Desde este primeiro encontro com a literatura, em suas fontes orais, criei um vínculo que seria para sempre. Cresci sentindo a literatura como um suprimento lúdico – e era assim para grandes e pequenos. Depois de um dia pesado na roça, as pessoas se sentavam ao luar, em tempos de calor, e ao redor do fogo-de-chão, no inverno, para ouvir histórias, declamar, e cantar. Era a hora da beleza, da “outra palavra”, da palavra que, de certo modo, salvava a todos, redimia, da rotina pesada.
Quando fui fazer o antigo ginásio descobri a literatura escrita e me encantei até a raiz dos cabelos com as palavras inventadas, agora, registradas em papel e tinta. Acho que a literatura, para mim, foi desde sempre alimento e salvação. Durante a síndrome de pânico a literatura ladeou com a sertralina no processo de cura. Não largava as Metamorfoses de Ovídio, Don Quixote, os livros de Mark Twain ( altamente curativos), Orlando Furioso ( um bálsamo) os livros de Cecília Meireles e dezenas de outros que se revezaram para me ajudar a sair do buraco. Do mesmo modo que leio para me salvar, também escrevo com esse intuito. Talvez por isso meu livro Pedras Soltas seja livro de cabeceira de muitos leitores, segundo eles próprios me confessam. A Kataherine Paterson, uma autora que amo, fala sobre esse poder curativo da literatura e José Marti também, no que concordo inteiramente.

2. Eu acredito que um escritor escreve sempre uma mesma história que é a dele, ou seja, mesmo quando conta algo que a princípio não tem nada a ver com ele, o escritor está ali presente, costurando pedaços de sua vida na vida de seus personagens. O que você pensa sobre isso?

Só posso falar da própria experiência de escrever e nela me baseio para concordar que a vida do autor, de algum modo, está presente no que ele cria, mesmo que a história não tenha nada a ver com ele. Se crio e dou de mamar a meus personagens durante dias, meses, anos, é esperado que eles tenham algo do meu DNA não é mesmo? Depois desmamam e vão pelo mundo, mas vão com marcas indeléveis de seu criador.

3. Como é para você ser escritor em um país como o Brasil?

Desde os dezesseis anos, quando comecei a lecionar e lutar para envolver gentes pequenas e grandes com livros, aprendi que, no Brasil, livro – e livro literário – tem que ser descoberto, mostrado, apontado, levado e, em muitos casos, lido COM. Gosto muito do título de um Concurso da FNLIJ que é “LEIA COMIGO!”. Num país sem tradição de leitura, como o nosso, é imprescindível LER COM crianças, jovens, velhos na escola, na casa, na praça, nas bibliotecas, nas livrarias, nos cafés, nas ruas, nas salas de ferramentas...
Então, ser escritor, num país como o Brasil requer um trabalho de ajudar o próprio livro a ser descoberto pelos leitores, já que não há uma prática arraigada de leitura espontânea. Uma pessoa pode passar toda a formação básica e universitária sem pisar numa livraria. As bibliotecas das escolas têm recebido acervos ótimos nos últimos tempos, mas noto que( em muitos casos) os livros chegam, são postos nos armários e, muitas vezes, não são lidos. “Ah, tem esse livro na minha escola?!!!” Hoje não há mais a questão do acesso ao livro, como nos anos de 1960, acho que o nó górdio tá na dinamização dos acervos, mostrar as obras, tirar das prateleiras e espalhar no chão, nas mesas, nos varais, nos corredores, no pátio. A cultura de leitura é adquirida, não acontece por mágicas e, para se estabelecer há um longo caminho. Só livros à mancheia não bastam. Centenas de obras desaparecem no sumidouro que são as bibliotecas sem bibliotecários.
Acho que a internet é uma grande aliada dos escritores. No meu caso que tenho complicações de saúde e não posso mais ( ou posso pouco) divulgar os livros que edito, valho-me da blogosfera , que considero valiosa para dar notícias dos livros publicados.


4. Você sabe que sou sua fã, de carteirinha e tudo; por isso tenho muita curiosidade em saber como é o seu processo de criação. De onde e como você retira tantas imagens poéticas, como em Beatriz e Pedras Soltas?

Huizinga diz que a poesia habita as regiões lúdicas do espírito. Acho que todo poético vem dessas regiões. Escrevo sobre o que me arrrebata, atravessa e corta. O Pedras Soltas é quase um acerto de contas poético com a vida. É a memória macerada, decantada e pegada no pulo pela experiência presente com pitáculos do nonsense, que não sei de onde vem, mas desconfio que tenha a ver com vivências da infância . Convivi com adultos que eram lúdicos e não sabiam contar uma coisa qualquer sem exagerar nas tintas, na boca deles tudo ficava fora de si e engraçado. Aquilo me fascinava. Minha mãe, por exemplo, até para dizer que sumiu a tesoura da casa, fazia um piseiro poético tipo assim: “chamem, chamem todos os cachorros, chamem as galinhas, avisem a vaca, chamem o pato pra achar a tesoura que eu sozinha nunca vou achar”. Não é à toa que às vezes sinto que estou escrevendo pela mão de minha mãe.
A memória de profa. influi em muitos pontos de Beatriz – tive alunas que eram leitoras vorazes como essa personagem, e alunos como Samuel. Também conheci muitas “Guiomares” maravilhosas lutando pelo direito à leitura literária, nos lugares mais inóspitos e anti-leitura.





Respostas de Gina Martins


1. Como surgiu a leitora Georgina, a profa. e a escritora?

R.Comecei a ler com quatro anos de idade pelas mãos de minha mãe. Uma mulher que só cursou até o 2ª série do antigo primário, mas que adorava declamar poesias. O maior desejo dela era ser professora, mas a vida lhe reservou o lugar de empregada doméstica em casa de gente muito rica, no Rio de Janeiro, logo depois do fim da guerra.
Aprendi com ela que o livro era a coisa mais importante do mundo. Em nossa casa o conhecimento era a nossa religião.
A primeira vez que li uma palavra inteira foi em uma viagem de bonde: feliz eu li a palavra fubá, estampada nos cartazes de propaganda nas paredes do veículo. Costumo dizer que essa foi a minha primeira viagem coma leitura.
Minha mãe e meu pai me contavam muitas histórias e causos num tempo em que não havia televisão em nossa casa. Não tínhamos dinheiro para comprar livros, mas meu pai me comprava revistinhas de banca de jornais e minha mãe me levava em bibliotecas. Foi assim que nasceu a leitora.
A professora, acho que foi conseqüência. Sempre quis ensinar pra todo mundo as coisas que eu aprendia então resolvi ser professora.
Com o tempo veio a vontade de escrever profissionalmente, para poder contar pra todo mundo sobre as coisas que sinto, que vivencio; sobre o que me deixa triste e sobre o que me alegra.


2. O que a move a escrever?

Uma vontade enorme de mudar o mundo, de acabar com os preconceitos, com a desigualdade social, com a fome, com a miséria e com a injustiça.

3. Como você gostaria que seus livros fossem lidos nas escolas?

Tenho ficado muita satisfeita com o resultado dos trabalhos que os professores fazem com os meus livros. Acho que cada livro pede um tipo de leitura e a leitura que fazem dos meus livros tem me agradado bastante.


4. Na história de leitura de seus livros pelo país afora, que fatos, curiosidades, acasos, descobertas tem acontecido e que chegam até você?
Tem um livro meu, O menino que brincava de ser, que é muito especial. Já recebi notícias de como ele foi importante pra mexer com a vida de alguns leitores, e também dos pais desses leitores, pois o livro fala de aceitação das diferenças. É uma história sobre um menino que deseja ser menina.
Foi o primeiro livro de lit. infantil que foi comentado em uma revista GLS e isso foi muito bom. Dei uma entrevista para a Revista e foi a melhor entrevista que dei até hoje.
Além desse, tenho um outro, Com quem será que me pareço, que mostra os bichos que se parecem com as crianças, então coloquei o mico-leão-dourado se parecendo com um menino bem lourinho, só para mostrar que, assim como os humanos, há macacos louros, negros e brancos; e isso tem dado muito bom resultado.

4 comentários:

  1. Oi, Regina,
    adorei o convite e agora o resultado.
    Gostei muito de, pelo menos virtualmente, estar presente nesta cidade que amo tanto.
    Costumo dizer que sou paulista de coração.
    Beijos

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  2. Adorei o Vice Versa de dezembro. Parabéns às escritoras Georgina e Eloí pelos emocionantes depoimentos sobre a Literatura e a vida.

    Muito bom conhecer os escritores de todo o Brasil
    através da organização da Regina Sormani.

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