terça-feira, 3 de abril de 2012

Vice-Versa de abril de 2012


Caros amigos!
O Vice-Versa de abril traz uma  conversa gostosa entre o escritor Edson Gabriel Garcia, associado da regional paulista da AEILIJ e o escritor e ilustrador Maurício Veneza da regional RJ.
Obrigada pela participação e um beijo a todos.
Regina Sormani




MAURÍCIO VENEZA  pergunta e EDSON GABRIEL GARCIA responde:

1-Edson, você é escritor, educador, dirigiu escola... Não é difícil imaginar como se forma um educador. Mas como é que Edson Gabriel Garcia “virou” escritor?

Pois é... sempre me perguntam isso: como “virei” escritor. Geralmente as crianças e jovens das escolas por onde ando. Claro, perguntam sem as aspas que você providencialmente colocou. Aí vou explicando como foi essa viração, que foi acontecendo aos poucos, muito aos poucos. Eu nasci em uma cidade pequena, no interior do estado de São Paulo. Filho de pais quase analfabetos, cresci na rua longe de livros, jornais e revistas. Minha primeira lembrança de jornal é a do papel que servia para embrulhar as compras nos armazéns. Na época certa, fui para a escola. Pública e pobre, sem livros e sem biblioteca. Escrevíamos pouco e líamos quase nada. Outra das minhas  lembranças é a do primeiro livro de leitura “extra-classe”. Imagine: um garoto de pouco mais de dez anos, sem nenhum repertório de leitura e quase nada de significações, diante da leitura de Iracema de José de Alencar. Foi a pior experiência possível. Poderia ter sido vacinado contra a leitura para sempre. Mas não fui. Fui salvo três anos depois pela leitura do Capitães D’areia, do Jorge Amado. Dessa época também me lembro do prazer que comecei a cultivar em escrever. Meus textos eram, muitas vezes, expostos no tal “quadro de honra”, uma prática comum na minha escola daqueles tempos. Mais tarde um pouco, lá pelos idos dos dezessete anos, comecei, por iniciativa e proposta próprias, a escrever no jornalzinho da cidade. Um semanário publicado aos domingos com matérias encomendadas, informações oficiais da prefeitura, coluna de aniversários, etc. Num daqueles domingos, nos idos de 1966, amanheceu com uma coluna assinada por mim, em que eu escrevia sobre fatos corriqueiros da cidade. Embora desde muito eu já vinha gostando de escrever, creio que foi aí que se deu a viração. Pela primeira vez na vida, ainda jovem e num cenário muito amistoso e conhecido, eu senti essa coisa  meio inexplicável que é “escrever e ler lido e repercutido pelos outros”. A partir daí, foram muitos anos no jornal, nos bastidores de uma emissora de rádio local. Continuei, na faculdade, escrevendo e participando de concursos de poesias. Mais tarde, já professor, dando aulas de leitura e redação, montando bibliotecas escolares, fui dando conta de que gostaria de escrever histórias para os meus alunos lerem...Não sabia como, não tinha parente importante, não era vip, não tinha nenhuma relação com o mundo editorial... A aprendizagem foi dura no início. Descobrindo os caminhos, buscando espaço, lendo, escrevendo  e descartando muita coisa, cheguei ao primeiro livro publicado. Final dos anos setenta e início dos anos oitenta. De lá pra cá, só histórias: desde a lembrança dos direitos autorais pagos de seis em seis meses com mais dois de carência, num cenário de inflação altíssima até o prazer de ver livros traduzidos, agora já escritor “virado” ou “em viração permanente”...

2- Sua obra é bastante variada e extensa. Vai desde livros sobre cidadania até a história de um robô faminto. Tenho aqui o seu “Sete Gritos de Terror”, que, como o nome indica , é de “contos espantosos”. Num tempo em que a onda do politicamente correto determina o que pode ou não ser escrito, é difícil publicar um livro destes no Brasil?

Minha obra é variada, talvez em conseqüência da minha ligação com a escola. O lado educador fala sempre e fala muito. Nesse sentido eu escrevo o que quero, o que tenho vontade, da forma como penso e desejo. E muita coisa eu escrevo a partir do que detecto como necessidade na/da escola.  Bem pragmático e bem “politicamente correto”! Sabendo, claro, que são coisas diferentes, gêneros diferentes, com funções diferentes... Permito-me andar por estes caminhos, sem a menor preocupação com o enquadramento da obra e com a possibilidade de publicação. Se vão publicar... aí é outra história. Lá pelos idos de 1982 eu já havia escrito um livro (Histórias do País dos Avessos) em que a metalinguagem estava presente. O texto foi publicado primeiro na folhinha de São Paulo. No início dos anos oitenta, fui um dos primeiros a escrever histórias (contos) com o tema amor para a moçada.  Meados dos anos oitenta, escrevi a primeira versão desses Sete Gritos de Terror, naqueles tempos o terror era um gênero absolutamente fora do cardápio de leitura. Pensava comigo, se todo mundo gosta de uma história de terror, se bons escritores estrangeiros fazem o maior sucesso aqui entre nós com seus livros e filmes, por que não podemos fazer os nossos!? A primeira edição teve quinze tiragens. Por outro, depois dessas considerações,  eu não vejo – ou não sinto – muito esse problema do policiamento nas publicações. Se o texto é bom, interessante e bem escrito, sempre haverá alguém disposto a publicá-lo. Por exemplo: um dos meus maiores fracassos (de venda) é um dos livros de que mais gosto. Cartas Marcadas, publicado pela Cortez, quatro anos depois ainda arrasta uma primeira edição. Sei de histórias interessantes de boicotes ao texto ( e não são histórias que rolaram em escolas ). Pela simples razão que o livro é a história de um garoto que vai descobrindo e entendendo sua homossexualidade. Um dos maiores sucessos de venda no país, hoje,  é uma coleção de um menino que faz um diário, cheio de comportamentos politicamente incorretos, transversalizado por sua cultura de origem (norte americana). Pior que isso, é a ação também politicamente correta levada adiante com as enormes  compras centralizadas feitas pelo governo. De um  total de cinco mil livros inscritos são “escolhidos” pouco mais de cem...
Penso que precisamos discutir um pouco mais isso. Aqui é só um aperitivo.


3- A nossa geração se acostumou com o livro identificado como um objeto de papel, encadernado, encapado, que a gente pode não apenas ler, mas também manusear, folhear e sentir a textura. O livro de papel está mesmo, como se vem dizendo, no corredor da morte?

Não sei. Tenho pensado muito sobre isso. Consigo formular apenas algumas idéias ainda frágeis sobre o assunto. Minha primeira percepção é crivada pela geração a qual pertenço. O livro de papel, da forma como o conhecemos, ainda é uma presença forte. Não vejo a vida, o mundo, sem este tipo de objeto. E nem acho que o livro virtual seja hoje uma ameaça concreta, definitiva. Vai depender um pouco de como as coisas acontecerão, de como a economia do livro vai se comportar. A escola, no caso do Brasil, que é uma parte importantíssima no mercado editorial, como se comportará? Os alunos lerão apenas livros virtuais? Os livros, as lousas, os cadernos, tudo será trocado? Estas perguntas ainda não estão respondidas. Por outro lado, nunca vimos um lobby tão poderoso quanto este da indústria da tecnologia da informação. Os caras conseguem criar a necessidade de consumo e vender seus produtos de TI, em grande quantidade, para escolas que não têm professores, que não têm livros, móveis, etc... Mas, não conseguiremos deter a história, se esse for o caminho do jogo de interesses dos grandes donos do poder. Restaria para nós a certeza de que sempre haverá espaço para mentes criativas. Além do que, esse caminho possa trazer outras oportunidades para nós. Enquanto isso, sinto prazer em carregar comigo um tijolo (SOLO, de Cesar Camargo Mariano) pra baixo e pra cima. O prazer que uma amiga minha, em uma viagem de passeio recentemente, não teve, às voltas com a leitura de um texto virtual no pequeno objeto escuro, frio, insensível, mudo...

4.Todos nós, que vamos muito a escolas e eventos, já vivenciamos situações pitorescas, como o aluno que faz uma pergunta pessoal desconcertante ou a professora que nos confunde com outro autor. Você se lembra de algum caso destes que gostaria de contar?

Minha relação com escolas, professores e alunos sempre foi muito intensa. Embora um paradoxo. Ao mesmo tempo em que me prendia, minava meu tempo e minha energia, era o celeiro mais fértil onde encontrava temas aos punhados para escrever. Não tive coragem de abandonar a carreira, a esta altura metido num projeto maravilhoso, do qual fui coordenador da equipe que o implantou, o Programa de Salas de Leitura das Escolas Municipais de Ensino Fundamental de São Paulo, ainda hoje um dos maiores – senão o maior – programa de leitura do país. Portanto minhas lembranças, com histórias, flashs, frases, homenagens, etc é muito vasta. Entre essas, a homenagem de escolas que deram o meu nome a sua Sala de Leitura. Mas, uma história de que gosto muito e da qual sempre lembro é de uma tarde de autógrafos em uma escola pública. Lá fui eu, convidado pelo pessoal da Sala de Leitura, falar com os alunos leitores de um livro meu. Chegando lá, não só os alunos que haviam lido o livro, mas todos os alunos dos terceiros e quartos anos estavam no pátio a minha espera. A entrevista correu como todas. Perguntas e respostas pululavam. Depois de algum tempo, repertórios de ambas as partes esgotados, a professora organizadora aproximou-se de mim e perguntou delicadamente se eu poderia autografar os livros dos meninos e meninas. Eu, diante daquele mar de cabeças, mais por delicadeza do que por qualquer outro sentimento, respondi que sim. A professora organizou uma tumultuada fila e começamos a sessão de autógrafos. Livros? Uns dois ou três. Depois dos livros vieram as agendas, depois das agendas vieram os cadernos, depois dos cadernos...depois dos cadernos...aí sim, o bicho pegou. Quando eu imaginava que estava acabando, a fila aumentava e mais e mais meninos e meninas entravam na fila com um pedacinho de papel rasgado, recortado... e colocavam diante de mim, na pequena mesinha onde estava acomodado, para receber o tal autógrafo... Muito tempo depois, vi o fim da fila, um garotinho com cara de assustado, agarrando sua mochila com a mão esquerda e segurando um pedacinho de papel na mão direita. Quando chegou diante de mim, finalmente ele, o último da fila, o papel foi colocado na minha frente e com a maior alegria do mundo eu rabisquei o meu “autógrafo” e devolvi o papelzinho autografado ao simpático garotinho. Ele pegou o papel, sem esboçar nenhum sorriso ou agradecimento. Ficou olhando aquele quase rabisco pouco inteligível pra ele e antes de ir embora, olhou para mim e perguntou: Tio, e agora, o que eu faço com isso? Até hoje eu não respondi a pergunta. E até hoje essa pergunta me acompanha em várias situações da vida.



EDSON GABRIEL GARCIA pergunta e MAURÍCIO VENEZA   responde:

 1. Maurício, conta pra gente, aquilo que só você sabe: quem é o Maurício Veneza?
Eu fui um menino reservado, da periferia, que gostava de ouvir e ler histórias. Hoje sou um velhinho que gosta de escrever e desenhar histórias. E ler. Entre um ponto e outro, há muito tempo e muitas influências. Meus pais eram do interior, gostavam de contar casos. A pobreza da família não impedia que a leitura fosse considerada uma atividade de grande importância. Minha mãe lia para mim histórias em quadrinhos e os contos de Grimm adaptados por Monteiro Lobato. Meu pai comprava jornais e revistas regularmente. Aos domingos, com aquela edição mais gordinha do jornal, cada um pegava um caderno, a família se reunia para a leitura. Neste ambiente se deu minha inauguração como leitor: minha mãe e minha irmã me alfabetizaram em casa.

2. A literatura, como muitos de nós tem a impressão, significa muito em sua vida? Qual a verdadeira dimensão da literatura em sua vida?
 Ah, é uma coisa fantástica. No sentido literal da palavra. A literatura pode me pôr em contato com o pensamento de escritores que viveram em outros lugares e outras épocas. Ela me fala das aspirações humanas, de como somos todos muito parecidos e muito diferentes. Pode me levar a lugares onde eu jamais poderia ir. Até porque muitos destes lugares nem existem... A literatura reorganiza o mundo apenas com as palavras. Li um texto do Neil Gaiman onde ele dizia que as histórias às vezes duram mais que os povos que as criaram. Embora não estivesse se referindo exatamente à literatura, acho que vale também para ela.

3.Você, sempre atento a todos os movimentos no tabuleiro de nossas preocupações profissionais, acha que ainda falta muito para nos profissionalizarmos - e assim sermos respeitados - como escritores e ilustradores?
É difícil dizer. Hoje talvez não se ouça com tanta frequência a famosa frase “Tudo bem, você escreve livros para crianças; mas trabalha em quê?”. Mas a profissionalização depende de mais do que isto. Necessita de reconhecimento social e de consciência profissional. É um longo caminho a ser percorrido. Ainda não há muita clareza na sociedade a respeito do que fazemos. Às vezes até quem faz também não possui esta clareza. Daí as atuais discussões sobre direitos autorais por gente que se baseia em suposições, frequentemente equivocadas. O escritor é identificado como alguém que paga para ser publicado ou como um rico ocioso. Quando viajo e vou me hospedar num hotel, preencho o item “profissão” dizendo simplesmente que sou desenhista. Se ponho “ilustrador”, corro o risco de ser confundido com lustrador de móveis; se ponho “escritor”, talvez me perguntem onde meu motorista estacionou a limusine...

4.Como leitor, como você vê a questão da leitura no país, a interface com as escolas, as escolhas e compras centralizadas pelo governo...
Eu me sinto surpreso. O número de títulos à disposição cresce de uma maneira que me impressiona. Sabe, eu não acredito muito nesta história de que brasileiro não lê. Desconfio das estatísticas, até porque elas são conflitantes entre si. Hoje mesmo, 28 de março, foi divulgada uma pesquisa sobre média de leitura do brasileiro (4 livros por ano, não tão distante da média europeia) que difere em mais de 100% dos dados divulgados em reportagem de uma revista (1,8 livros por ano) neste mesmo mês. A reportagem dizia que o crescimento de livros impressos foi de 23% em 2010! Ora, se a média de leitura está caindo, como já ouvi dizer, devo deduzir que os editores enlouqueceram e estão imprimindo apenas para encher galpões? Acho que não. Os jovens devoram vorazmente as sagas de fantasia  e elas estão cada vez mais volumosas. E isto é só quanto aos livros de papel. Temos que considerar também os e-books, audiolivros, cópias piratas... Como profissional, me preocupo. Estamos demasiadamente atrelados aos programas de governo. Ficamos dependentes. As editoras já começam a estabelecer que se escreva ou ilustre de determinada maneira por que é o que “tem mais possibilidades de entrar no PNBE”. Isto não contribui para a liberdade de criação. Nem ajuda o leitor, que se vê sem voz, sujeitado às escolhas dos chamados especialistas.





Um comentário:

  1. ei meninos maravilhosos, vcs são um exemplo e tanto. sou fã dos dois !

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